Por Alexandra Borba, Elisa Estronioli, Gilberto Cervinski l Movimento dos Atingidos por Barragens – publicado em 1º de agosto de 2024.
Este artigo apresenta três reflexões sobre a política energética no Brasil e os desafios sobre o tema da “transição energética”. A primeira tem relação com as iniciativas de reorganização da produção diante da grave crise na economia mundial, vista como oportunidade pelos agentes econômicos para alargar seus negócios e concentrar ainda mais a riqueza. A segunda aborda as bases organizacionais da indústria energética no Brasil, que condicionam as iniciativas de transição e devem ser enfrentadas. Por último, tratamos a relação da transição energética com as mudanças climáticas e a financeirização da natureza e do clima.
Em primeiro lugar, partimos da noção que a centralidade da organização da política energética não está na esfera da circulação ou da troca de mercadorias, mas no espaço da produção. A energia é parte integrante de um processo fabril que, sob a atuação consciente dos seres humanos sobre a natureza, permite intensificar e transformar os processos de produção, gerando saltos de produtividade para a produção de valor e valor excedente no modo capitalista de produção.
Vale lembrar que a produtividade é determinada pela destreza média dos trabalhadores, pelo grau de desenvolvimento da ciência e tecnologia, pela organização social no processo de produção, pelo volume e eficácia dos meios de produção e pelas condições naturais ou bases naturais para sua produção (Cervinski, 2019). Como o valor de uma mercadoria é determinado por seu valor médio em perspectiva global, os agentes controladores das unidades e locais mais produtivos terão uma condição extremamente favorável. Além do lucro médio, obtêm um lucro extra e protegem-se de eventuais crises.
Essa é uma disputa central nesse momento, que tem se dado principalmente entre os países do Norte Global, do centro do capitalismo, e países em desenvolvimento, que têm buscado a ascensão de sua indústria, como os BRICS, especialmente a China.
Assim, verifica-se que as iniciativas de transição energética em curso estão inseridas em uma busca por saídas para a grave crise da economia mundial. As forças econômicas que detêm o poder em escala internacional intensificam as disputas e movimentos por técnicas e tecnologias de reorganização do trabalho, para elevação das taxas de exploração e lucratividade do capital. E os locais com estruturas de maior produtividade, como o caso do Brasil, tornam-se centro de maiores disputas por seu controle. Nesse cenário, a energia tem extraordinária importância nessa reorganização da economia mundial.
A segunda reflexão é sobre a realidade da indústria de energia brasileira. As ações privatistas que iniciaram na década de 1990 determinaram uma organização da produção de energia que penaliza o povo brasileiro, concentra a riqueza nacional e aprofunda nossa dependência externa.
As sete bases organizacionais da indústria de eletricidade brasileira podem ser entendidas como tendência para as demais cadeias de produção de energia. São elas:
1) o controle privado da energia, sob dominação dos bancos e fundos financeiros;
2) a anarquia do mercado sob o interesse do sistema financeiro, por meio do fracionamento em vários segmentos de negócios e o endividamento máximo das empresas de energia, com taxas de juros abusivas para benefício do capital portador de juros e rentista;
3) a aplicação da política de preços e tarifas de base internacional, baseados na energia mais cara, como mecanismo de espoliação da população brasileira;
4) leis e instituições de Estado que regulam a política energética capturadas, moldadas e subordinadas aos interesses do capital financeiro e seus associados subalternos;
5) reestruturação do trabalho para intensificar a exploração dos trabalhadores;
6) a ampliação das violações dos direitos das populações atingidas como padrão nacional;
7) a opção pela escolha de matriz de base natural vantajosa, condição diferencial para acessar o lucro médio mais o lucro extraordinário, o que torna as estruturas brasileiras alvo de disputa internacional.
Tal organização explodiu os preços e as tarifas de energia aplicadas à ampla maioria da população, mesmo que tenhamos um dos menores custos de produção de eletricidade. A alta produtividade do trabalho e a condição vantajosa viraram mecanismo de privilegiamento de uma minoria rentista, em detrimento da imensa maioria da classe trabalhadora.
Por isso, uma política de transição adequada aos interesses nacionais deve ter a ousadia de agir estrategicamente para mudar a política energética em todas as bases citadas, tanto nas fontes energéticas, como no conjunto da estrutura do sistema elétrico. A necessidade brasileira indica que a transição energética não pode ser reduzida à simples alteração de matriz: das fósseis para as renováveis. Apesar de sua enorme importância, é insuficiente.
Por último, no que diz respeito ao aquecimento global, a ciência revela que as causas principais são as crescentes emissões de gases de efeito estufa (GEE). De acordo com o 6º relatório do Grupo de Trabalho do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), a crescente queima de combustíveis fósseis, o uso insustentável da terra e o desmatamento são indicados como alguns dos principais causadores.
O mundo está mais quente do que no período pré-industrial e estamos sentindo as consequências cotidianamente. No Acordo de Paris, os países signatários acordaram em ter como meta limitar o aquecimento em 1,5ºC em relação aos níveis pré-industriais, mas há poucas medidas concretas para chegar ao resultado, o que tem colocado essa meta cada vez mais difícil de ser alcançada.
Devemos considerar que os maiores consumidores de energia são também os maiores emissores de GEE. De acordo com os dados do Our World in Data, em 2022 os Estados Unidos, a Europa e a China, juntos, foram responsáveis por 60% do consumo de energia primária, sendo que 86% é de fontes não renováveis (petróleo, carvão, gás natural e nuclear). Os EUA e Europa são os maiores responsáveis históricos. Um estudo chamado Carbon Majors, de 2017, revela que 100 grandes empresas respondem 70% das emissões desde 1988. Evidentemente que, no caso brasileiro, os grandes empresários agrícolas que lideram as iniciativas de desmatamento e agropecuária, devem também ser considerados como os agentes que mais contribuem para a crise climática.
A estratégia das oligarquias financeiras, que detêm o poder, apresenta como solução a “economia política do carbono”, que tem como objetivo promover a financeirização completa da natureza, e uma nova partilha econômica (e territorial) das bases naturais essenciais e dos valores excedentes em escala nacional e internacional. Querem transformar o clima em mais um grande negócio, como a criação de novos mercados e mercadorias, a privatização das florestas e das águas, a tributação focada no consumo (penalizando a classe trabalhadora) e as restrições de produtos de concorrentes comerciais diante das rivalidades industriais. Uma falsificação da resolução do problema. Em nada alteram a lógica da rivalidade, do parasitismo financeiro e das relações do modo de produção e circulação das mercadorias.
Enquanto as oligarquias financeiras aumentam seus lucros, as frações mais pauperizadas da classe trabalhadora sofrem com situações extremas de calor, degelo, secas, deslizamentos, inundações, enchentes, contaminações, escassez de alimentos, entre outros. O relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) reconhece que os que “menos contribuem para a mudança climática são afetados de forma desproporcional”. O fato é que a conta é paga pelas massas trabalhadoras que vivem nas periferias, sobretudo pela população negra e indígena e, em especial, as mulheres.
Portanto, a transição energética não é uma questão exclusivamente de mudança de matriz. Se fosse, o Brasil poderia ser considerado o país da transição feita. De acordo com os dados da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), realizados em 2020, enquanto o consumo de energia no mundo foi de 15% de fontes renováveis e 85% de não renováveis, no Brasil foi 51,6% e 48,9% respectivamente. E na eletricidade, enquanto no mundo é 71,4% não renovável e 28,6% renovável, no Brasil é 17,1% e 82,9%. A maior contribuição para o aquecimento global, no Brasil, vem do desmatamento e da mudança no uso do solo, principalmente na Amazônia e Cerrado.
O fato é que a crise climática é consequência da produção e reprodução do capital, baseado na exploração da ampla maioria da população e na lógica destrutiva da natureza e de descarte precoce das mercadorias. Uma transição restrita à matriz (fontes de energia), sem alterar a política energética e o modo de produção, terá efeito limitado. A lógica do capital é a produção com destruição, não com preservação.
Consideramos que o Brasil está diante de uma oportunidade histórica na questão energética que vai marcar as próximas décadas. O Brasil tem um extraordinário potencial de fontes renováveis, com força de trabalho qualificada, bases naturais vantajosas, estrutura de produção interligada e importantes estatais. Se agir estrategicamente, a transição energética pode ser uma oportunidade para a reconstrução nacional e reorganização de uma poderosa indústria de energia soberana e de referência mundial no cuidado ambiental. Caso contrário, se aprofundará a trajetória subalterna e de reprimarização da economia.
Os caminhos que se colocam são: aprofundar a atual política energética – marcada pelo parasitismo financeiro, preços abusivos, concentração de riqueza e dependência – ou mudar os rumos para a construção de novas relações de produção e controle da energia, associadas a uma estratégia nacional soberana e de cuidado da vida.
É necessário construir uma transição energética popular que coloque no centro o interesse das massas trabalhadoras, o cuidado ao meio ambiente e que tenha adequada distribuição dos resultados. Além disso, a produção da energia deve privilegiar as fontes renováveis, primando pelo cuidado com a natureza e combate à lógica da taxa de uso decrescente das mercadorias. A transição energética deve promover a mudança na totalidade da política energética, inclusive de matriz, capaz de viabilizar uma reorganização da produção e controle da riqueza nacional. Por isso, pautamos a necessidade de uma transição energética popular como parte fundamental de um projeto popular para o Brasil.