*POR MARCO ANTONIO S. C. CASTELLO BRANCO , NELSON HUBNER MOREIRA E ADHEMAR PALOCCI
A determinação do governo Lula em recuperar a influência da União na gestão da Eletrobras convida-nos a revisitar as disputas que se seguiram à privatização da Telebras e consequentemente à perda definitiva da soberania do Brasil no setor de telecomunicações.
Ao olharmos para o passado somos confrontados com a célebre profecia de que “todos os grandes fatos e personagens da história universal aparecem como que duas vezes: uma vez como tragédia e a outra como farsa”.
A privatização do setor de telecomunicações foi um evento trágico para a soberania nacional pois, desnacionalizado, resultou num país sem independência e liberdade para desenvolver os serviços de telecomunicações e toda a cadeia de valor a ele associada. Com 250 milhões de telefones celulares e 45 milhões de acessos de banda larga o Brasil possui o 6º maior mercado de telecomunicações no mundo, mas está relegado à 140ª posição na densidade de celulares por habitante e ao 90º lugar na densidade de conexões de banda larga.
O Brasil de hoje depende de importações de tudo o que diz respeito às telecomunicações: tecnologia, sistemas, componentes e equipamentos o que leva a uma balança comercial absurdamente deficitária no setor. Os investimentos só acontecem por imposição de uma agência reguladora condenada a se equilibrar no muro que separa as pressões de grupos que defendem todo tipo de interesses. A tão desejada competição que garantiria aos brasileiros serviços de qualidade e preços baixos está tão presente como a nota de três reais; basta consultar as estatísticas de reclamações de usuários.
Justificou-se para retalhar e vender a Telebras as filas de milhares de pessoas que aguardavam a instalação de um telefone, mas omitiu-se desonestamente que elas só desapareceriam com brutais aumentos das tarifas. A contribuição da venda da Telebras para colocar em ordem as contas públicas foi também insignificante; o governo FHC arrecadou recebíveis de R$ 22 bilhões equivalentes a 1,6 % do PIB de 1998, dinheiro insuficiente para saldar a conta de juros da dívida pública que naquele ano consumiu 8,0% do PIB.
A transferência da Eletrobras para o controle privado aconteceu em junho de 2022 sem que a empresa fosse retalhada. Furnas, Chesf, Eletronorte e Eletrosul foram vendidas na medida em que a participação da União (incluindo BNDES e BNDESPAR) no capital votante da holding foi diluída de 60% para 43% num processo de follow-on. Para isso foram emitidas 732 milhões de novas ações ordinárias compradas por investidores privados por R$ 31 bilhões. A União manteve suas 814 milhões de ações ordinárias, mas passou a poder utilizar apenas 202 milhões de ações (10% das ON’s) nas assembleias de acionistas, o que na prática representou um presente de R$ 26 bilhões dado aos investidores privados, valor que eles teriam dispendido se fossem obrigados a comprar as 613 milhões de ações que a União não pode mais usar para votar.
A privatização da Eletrobras deve entrar nos anais da história do capitalismo como sendo a primeira e única na qual o controlador não apenas deixou de receber um prêmio, mas pagou uma recompensa pela alienação do controle que mantinha numa empresa sadia e líder de mercado.
A privatização da Eletrobras se diferencia da venda da Telebras por ter sido construída dentro da própria companhia, uma vez que a partir de 2019 o governo Bolsonaro passou a preencher as vagas da União no conselho de administração com pessoas alinhadas só com os interesses do setor privado. Ato contínuo, este mesmo conselho elegeu uma diretoria executiva encarregada de construir modelos de privatização e estratégias de negócio contemplando exclusivamente a visão da Eletrobras privatizada. A venda da Telebras por sua vez foi modelada e executada fora da companhia tendo à frente o Ministério das Comunicações.
Os conflitos e discussões em relação às consequências das privatizações da Telebras e da Eletrobras têm em comum o fato de, num espaço de 20 anos, acontecerem sob governos presididos por Lula. Nessa disputa os interesses privados são representados principalmente por agentes do mercado de capitais na figura de gestores de fundos de investimento. Na BrT foi o Opportunity de Daniel Dantas quem ocupou a linha de frente na batalha; na Eletrobras é o 3G Radar de Jorge Paulo Lemann quem desempenha essa função. Em ambos os casos eles alcançaram uma influência na gestão da empresa privatizada desproporcional à quantidade de dinheiro que arriscaram na companhia. O Opportunity teria tirado do bolso apenas R$ 21 milhões para levar a BrT que custou R$ 2,1 bilhões no leilão de privatização. Os fundos geridos pelo 3G Radar detinham em 31/1/2023 nada além de 1,36% do capital total da Eletrobras.
O capital internacional esteve presente no leilão da Telebras e no follow-on da Eletrobras, mas com a distinção de que foram operadoras de telecomunicações estrangeiras como Telecom Itália, Telefônica e WorldCom que compraram participação nas empresas leiloadas, enquanto na Eletrobras participaram apenas fundos de investimento estrangeiros como BlackRock e GIC Private que assumiram posição de destaque possuindo em conjunto 12% das ações ordinárias da companhia. É forçoso verificar que nenhuma empresa do setor elétrico, brasileira ou estrangeira, comprou ações da Eletrobras denunciando o viés essencialmente financeiro da modelagem do processo de privatização.
O aumento de capital que diluiu a participação estatal na Eletrobras não envolveu dinheiro público, mas a Eletrobras não fica de pé sem o crédito estatal: a empresa encerrou 2022 devendo R$ 22 bilhões para instituições do governo federal, equivalente a 38% de toda sua dívida financeira 8. Desse montante a Eletrobras terá de pagar a entidades controladas pelo governo federal R$ 4,2 bilhões, ou 57% dos R$ 7,5 bilhões com vencimento até 2023. Para rolar e alongar o perfil do seu endividamento num cenário desafiador de juros altos e baixos preços de energia a Eletrobras dependerá totalmente da boa vontade do governo Lula. O resultado financeiro da Eletrobras em 2022 foi um déficit de R$ 4,3 bilhões, R$ 3 bilhões pior que no ano anterior e consumiu 1/3 do caixa líquido das operações continuadas. E vai ser muito difícil reverter esse quadro em 2023.
Critica-se muito a influência do governo na gestão das empresas estatais. Usa-se os casos de corrupção envolvendo a Petrobras para transferir para o Estado a fraqueza de caráter e ganância por dinheiro que são próprias dos seres humanos. As “inconsistências” no balanço da Americanas estão aí para mostrar que os comportamentos delinquentes não são privilégio de políticos e muito menos de agentes públicos.
No entanto, os defensores dos exageros da Lei das Estatais omitem do debate público o trágico destino da Telemar, um dos pedaços da Telebras que incorporou a BrT, passou a se chamar Oi e teve a Portugal Telecom entre seus controladores. Após 18 anos sob pavilhão privado e substituição de 9 presidentes, a Oi chegou em junho de 2016 devendo R$ 65 bilhões (R$ 91 bilhões em moeda de fevereiro de 2022) a 55 mil credores 9. O pedido de recuperação judicial foi a última salvação e a consequência nefasta do pragmatismo, esperteza e má-fé de alguns de seus controladores, privados, diga-se de passagem. Foram eles que em transações controversas descarregaram no balanço da empresa, acompanhados de dívidas bilionárias, ativos que haviam comprado; e foram também os mesmos que colocaram no bolso o dinheiro de negócios que deveria ter ficado na companhia para sustentar seu crescimento. E onde estavam os paladinos governança privada? Presentes com certeza, mas em silêncio, de olhos fechados e ouvidos tapados. Bancos, debenturistas, acionistas minoritários, fornecedores, clientes e empregados, todos perderam no desastre da Oi. Salvaram-se os controladores mais espertos.
A tragédia da privatização da Telebras há 25 anos, que ameaça se repetir hoje como farsa na Eletrobras, contou também com a colaboração decisiva do tsunami causado pela evolução tecnológica. A comunicação digital simplesmente transformou em pó o valor da cobertura com telefonia fixa em mais de 5.000 municípios brasileiros que constituía o principal patrimônio da Telebras. As usinas hidrelétricas e as linhas de transmissão são o grande ativo da Eletrobras, mas seu valor não está imune ao impacto das profundas alterações técnicas, mercadológicas e regulatórias que o crescimento da geração de fontes eólicas e fotovoltaicas e a enorme expansão da geração distribuída já estão provocando. A transição energética e o novo padrão de competição no setor elétrico podem custar a vida da Eletrobras, preço que a telefonia celular e a banda larga cobraram do espólio da Telebras.
O governo federal conhece esse risco e, por esse motivo, não pode renunciar a recuperar o poder de influenciar a gestão da Eletrobras. Só a União é um acionista perene capaz de preservar a empresa para os brasileiros que ainda virão ao mundo.
Toda corporation sem controlador definido fica refém das avaliações trimestrais do mercado financeiro. Não raro, a empresa vira alvo de ativistas e especuladores exigindo planos de recompra de suas próprias ações; aliás como a Eletrobras acaba de anunciar. Se faltar caixa para isso, contrata-se novas dívidas. Para pagá-las, apela-se para cortes de pessoal ao custo da perda de knowhow e capacidade operacional. Se ainda faltar dinheiro inicia-se o esquartejamento da empresa com venda de ativos. No fim, restará só o bagaço do que antes foi uma fruta vistosa.
A garantia do suprimento de energia elétrica e a soberania do Brasil num setor crítico da infraestrutura do país não podem ficar refém do grande risco embutido na pulverização do controle acionário da Eletrobras.
Marco Antonio S. C. Castello Branco
Engenheiro metalurgista, ex-presidente da Usiminas e da Cia. de Desenvolvimento de MG
Nelson Hubner Moreira
Engenheiro eletricista, ex-diretor geral da ANEEL e ex-ministro da Minas e Energia
Adhemar Palocci
Engenheiro civil, ex-funcionário de Furnas, ex-secretário de Finanças da Prefeitura de Goiânia e ex-diretor de engenharia da Eletronorte.
Publicado originalmente em Carta Capital.