Na próxima quinta-feira, 15 de maio de 2025, o Governo Federal deverá anunciar o lançamento de uma Medida Provisória que pode representar um dos maiores retrocessos já impostos ao setor elétrico brasileiro. Ela representa um novo e perigoso passo rumo à completa liberalização do setor elétrico brasileiro. Por trás de falaciosos discursos técnicos e promessas de modernização, esconde-se um projeto que pavimenta o caminho para que grandes corporações dominem um serviço essencial ao bem-estar da população e à soberania nacional. No mesmo bojo, passam a controlar nossas reservas de água e a influenciar até mesmo os níveis de inflação.
A proposta de reforma do setor elétrico apresentada pelo ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, não é uma reforma institucional. A MP reúne um conjunto de medidas desconexas, organizada em três eixos:
O Eixo 1 – trata da reformulação e ampliação da Tarifa Social de Energia Elétrica, com destaque para a proposta de gratuidade na conta de luz para famílias de baixa renda inscritas no CadÚnico que consomem até 80 kWh por mês. Apesar de representar um alívio, esse patamar é extremamente limitado, a “cesta” de eletrodomésticos essenciais não prevê sequer o uso de um ventilador, o que restringe significativamente o conforto e a qualidade de vida dessas famílias. Caso o governo mantenha esse patamar rebaixado de benefício, que atenderá, em um primeiro momento, à população de mais baixa renda, os custos excessivos da liberalização do setor recairão sobre todos os demais consumidores — em especial sobre a classe média e sobre os consumidores de baixa renda que não estão inseridos no CadÚnico.
O Eixo 2 – propõe a abertura total do mercado de energia, permitindo que todos os consumidores, inclusive residenciais, possam escolher livremente seus fornecedores. Isso representaria o fim do atual modelo de contratação regulada pelas distribuidoras, substituído por contratos entre consumidores e agentes comercializadores, introduzindo um novo agente atravessador e novos custos a serem remunerados. Essa mudança transfere os riscos de contratação e variação de preços para o consumidor, que pode ficar mais exposto às flutuações de preços. Os custos da expansão e de operação do setor relacionados à transição para o mercado “livre” são altos e não há definição clara sobre quem arcará com eles.
O Eixo 3 – este eixo da proposta trata de medidas de redução ou de redistribuição de encargos setoriais, com medidas como a equalização do pagamento da Conta de Desenvolvimento Energético (CDE) para a geração distribuída, a distribuição equitativa da CDE conforme o consumo e a redefinição do conceito de autoprodutor — que hoje assegura acesso a diversos benefícios fiscais e tarifários — entre outras alterações estruturais relevantes.
Essas mudanças afetam diretamente o valor e a lógica dos ativos do setor, sendo, portanto, um grave equívoco conceitual implementar o Eixo 2 antes de consolidar ou sequer definir plenamente os parâmetros do Eixo 3. O impacto do Eixo 1 também depende do resultado da reorganização dos encargos e subsídios. A simultaneidade na implementação dos eixos compromete a coerência regulatória, cria incertezas e distorce os sinais econômicos, dificultando a avaliação de investimentos e ameaçando a estabilidade do setor. Além disso, por si só, o conteúdo do Eixo 2 representa um erro estrutural com sérios riscos para a modicidade tarifária, a segurança energética e a equidade no acesso à energia.
Uma reforma do setor elétrico – não deve ser implementada via medida provisória, dado seu amplo impacto socioeconômico. A eletricidade é um insumo estratégico para consumidores e cadeias produtivas e mudanças abruptas podem gerar instabilidade tarifária, encarecer produtos e serviços e prejudicar especialmente os mais vulneráveis. Além disso, uma transformação dessa magnitude exige debate democrático com todos os atores envolvidos — trabalhadores, consumidores, especialistas e setores produtivos —, assegurando transparência e equilíbrio entre interesses públicos e privados.
Reformas conduzidas sem ampla discussão, sob pressão de lobbies empresariais, tendem a privilegiar grupos específicos em detrimento do interesse coletivo, comprometendo a segurança energética e a justiça social. Portanto, o tema deve ser tratado por meio de legislação ordinária, com participação social e análise técnica cuidadosa, evitando decisões unilaterais e apressadas.
O falso discurso da liberdade de escolha – a promessa de liberdade de escolha para o consumidor é ilusória. Mesmo que possa escolher um “fornecedor” no mercado, continuará dependendo fisicamente do Sistema Interligado Nacional (SIN). A energia entregue não carrega identidade de fonte ou origem — trata-se de um sistema coletivo, integrado e operado centralmente. É incorreto afirmar que as fontes de geração de energia concorrem entre si em um mercado livre. A operação eficiente do sistema elétrico depende da coordenação centralizada entre as diferentes fontes de geração — hidrelétricas, térmicas, eólicas, solares — e da integração com o sistema de transmissão. Essas fontes operam de forma complementar, e não concorrencial, para garantir segurança, estabilidade e otimização técnico-econômica do suprimento. O setor funciona como um sistema interdependente, e não como um mercado atomizado.
O avanço da liberalização e a financeirização do Setor Elétrico – o que se observa com a liberalização do setor elétrico é um progressivo descolamento entre o mundo físico — onde se localizam as usinas, as linhas de transmissão e a operação real do sistema — e o universo financeiro dos contratos, onde se define a compra e venda da energia, a repartição dos custos e a apropriação dos lucros.
A energia gerada por uma usina, por exemplo, pode ser revendida sucessivas vezes antes de ser efetivamente entregue, sem qualquer vínculo direto com o fluxo elétrico que chega ao consumidor. Essa dissociação gera ineficiências sistêmicas, opacidade nos custos e risco de preços artificiais, desconectados da operação concreta do sistema. Além disso, desloca o foco do setor da engenharia e do planejamento de longo prazo para os interesses imediatistas do mercado financeiro, comprometendo a segurança energética, a modicidade tarifária e a universalização do acesso.
Nesse modelo a eletricidade deixa de ser tratada como um bem essencial vinculado à infraestrutura crítica nacional e passa a operar como uma commodity financeira, sujeita a múltiplas intermediações, especulações e estratégias de arbitragem. A liberalização plena do mercado amplia o espaço para agentes financeiros — bancos, fundos de investimento e traders — transformando a energia elétrica em ativo de bolsa, negociado por meio de contratos futuros, derivativos e outros instrumentos especulativos. Isso rompe a ligação entre os preços e os custos reais de geração, introduz volatilidade artificial e expõe o sistema à instabilidade típica dos mercados financeiros — agravada pelas variações naturais nas vazões das hidrelétricas.
Esse ambiente favorece distorções: bolhas de preços, bônus elevados para executivos de geradoras e comercializadoras, e uma tendência crescente a práticas arriscadas ou abusivas. A desconexão entre preços e fundamentos lembra os mecanismos que precipitaram crises financeiras como a das hipotecas subprime — um alerta sobre os perigos de replicar essa lógica no setor elétrico.
Atualmente, cerca de 39% da eletricidade consumida no Brasil já circula no mercado livre, impulsionada pela migração de consumidores industriais e comerciais. Esse segmento responde por 93% do consumo da indústria e 41% do comércio (Boletim Abraceel, fev/2025). Nele, a energia pode ser negociada repetidamente antes da entrega final — em dezembro de 2024, cada megawatt-médio foi transacionado, em média, 6,33 vezes. As principais comercializadoras são controladas por bancos como BTG Pactual, Itaú e Plural, além de grandes grupos do setor elétrico.
A volatilidade no mercado livre é extremamente elevada, tanto no preço horário quanto nas variações ao longo do dia e dos meses. Segundo a Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE), o Preço de Liquidação das Diferenças (PLD) — referência para o mercado de curto prazo — saltou de R$ 61,07/MWh (preço-piso regulatório) em 24 de junho de 2024 para R$ 291,77/MWh apenas quatro dias depois. No mercado horário, há registros de flutuações superiores a 300% em menos de duas horas.
Essa elevada instabilidade não apenas compromete o planejamento, como também pode atuar como uma barreira de acesso para a maior parte da população, especialmente consumidores residenciais e de pequeno porte, que não dispõem de instrumentos financeiros ou capacidade técnica para se protegerem das oscilações. A imprevisibilidade dos preços, nesse contexto, deixa esses consumidores mais vulneráveis e amplia as desigualdades no acesso à energia.
Vão dizer que você poderá escolher de quem comprar sua energia. Mas escolha de verdade só existe quando há opções reais — e principalmente, quando há preços acessíveis. Se todas as empresas oferecem energia cara, o consumidor está preso num “cardápio” onde só tem prato salgado. Isso não é liberdade: é ilusão de escolha. Esse cenário amplia a desigualdade entre grandes e pequenos consumidores. Os primeiros negociam contratos longos, contam com assessoria jurídica e poder de barganha. Os últimos, ao contrário, ficam expostos a contratos-padrão mais arriscados, com maior volatilidade e pouca margem de reação. A abertura completa do mercado tende a agravar essa assimetria, consolidando uma elitização no acesso à energia elétrica. Chamam de liberdade o que, na verdade, é mais desigualdade. Um modelo feito para beneficiar quem lucra com a energia, não quem precisa dela para viver com dignidade. Energia é um direito, não mercadoria para enriquecer poucos.
A MP é um cheque em branco! E os custos da transição? Quem vai pagar a conta? – a liberalização do mercado de energia, embora vendida como sinônimo de liberdade de escolha e redução de custos, esconde riscos que recaem diretamente sobre o consumidor residencial. A experiência internacional mostra que, em mercados liberalizados, tarifas tendem a subir no curto prazo para cobrir os custos da transição, penalizando justamente os consumidores menos preparados para lidar com a complexidade de contratos e volatilidade de preços.
Existem muitos pontos cegos na reforma, muitas indefinições, que representam riscos para o consumidor. A transição para o modelo totalmente aberto exige ajustes bilionários – como o financiamento do supridor de última instancia e os custos de realocação da sobrecontratação de energia das distribuidoras. O governo já sinalizou que essa conta vai sobrar para o consumidor, sem dizer qual será o tamanho desse prejuízo! O modelo de liberalização não se aplica ao Brasil – a liberalização do setor elétrico brasileiro é uma reedição fracassada da reforma dos anos 90, que levou ao apagão e aumento das tarifas. Longe de representar modernidade, é um projeto ideológico de enfraquecimento do papel do Estado, mesmo após o fracasso global do neoliberalismo no setor elétrico.
O modelo liberal é mimetizado, inspirado em países onde o setor elétrico possui base térmica (como o Reino Unido) ou com hidrologia altamente previsível (como a Noruega). No Brasil, com base hidráulica volátil e dimensões continentais, a liberalização aumenta o risco sistêmico, com sérias implicações sobre a segurança energética e a modicidade tarifária. Não por acaso, EUA e Canadá mantêm suas grandes hidrelétricas sob regulação a custo de serviço, reforçando a importância do controle público desses ativos.
O Brasil já experimentou, no final dos anos 1990 e início dos anos 2000, um modelo de mercado mais liberalizado, em que a expansão da geração dependia quase exclusivamente da iniciativa privada. O resultado foi desastroso: a falta de planejamento coordenado, somada a uma crise hídrica, levou ao racionamento de energia em 2001, com cortes no fornecimento, preços disparados e graves prejuízos econômicos.
A resposta a esse colapso, ainda que um remendo, na forma de retomada parcial do planejamento, se deu com a realização de leilões de energia organizados pelo governo. Esses leilões, aliados a atuação de uma Eletrobras pública e ao financiamento do BNDES, garantiram que novas usinas fossem construídas, evitando maiores desequilíbrios entre oferta e demanda. A nova MP, no entanto, parece ignorar essa lição histórica, reintroduzindo um modelo que já se mostrou frágil e arriscado. Além disso, qualquer perspectiva de transição energética demanda coordenação, planejamento de longo prazo e atuação estatal forte, não um ambiente dominado por agentes buscando lucro no curto prazo. Em um contexto de eventos climáticos extremos, fontes intermitentes (eólica, solar) precisam ser complementadas por sistemas de backup, armazenamento e reforço da rede — elementos que o mercado liberal tende a subfinanciar.
Não por acaso, a experiência internacional mostra que esse caminho tem levado a impasses. Segundo o relatório Reclaiming Public Services (TNI, 2017), mais de 300 reestatizações no setor de energia elétrica ocorreram desde os anos 2000, muitas delas na Europa. Na França, a EDF foi reestatizada; na Alemanha, cidades como Hamburgo e Berlim remunicipalizaram redes de distribuição; no Reino Unido, a falência de empresas privadas como a Bulb expôs consumidores à instabilidade do modelo liberalizado. Esses casos revelam o esgotamento da lógica mercantil e a retomada do controle público como resposta à crise tarifária e à insegurança energética.
Além disso, a liberalização não reduz monopólios, apenas os transfere para grandes players. E, após acerto que viabiliza o acordo para selar a privatização da Eletrobras, levada a cabo também por Alexandre Silveira, surge essa proposta de MP, em um contexto de alta concentração no mercado de energia elétrica. A Eletrobras, agora sob controle privado, detém cerca de 23% da geração e 42% da transmissão de energia no país, configurando um cenário de “superplayer”, onde um único agente privado detém poder de mercado suficiente para influenciar preços e limitar a concorrência.
Em setores com ativos específicos e alta interdependência, como o elétrico, a concorrência pode gerar ineficiências e riscos de manipulação do mercado. Ao contrário de promover eficiência, a liberalização tende a reforçar oligopólios privados, colocando em risco a segurança energética, a modicidade tarifária e o interesse público.
Conclusão:
A liberalização do setor elétrico brasileiro não representa modernidade nem avanço. Trata-se de uma proposta ideológica, descolada da realidade nacional, que já mostrou seus limites em experiências passadas. O setor elétrico exige coordenação, previsibilidade, investimento e compromisso com o interesse público – condições que o mercado liberalizado não tem como oferecer.
A proposta de liberalização do MME repete os mesmos erros que levaram ao apagão de 2001, colocando o país em risco de novos colapsos no abastecimento. Além disso, enfraquece a capacidade do Estado de garantir uma transição energética ordenada, deixando o futuro da matriz elétrica brasileira à mercê dos humores do mercado.
O setor elétrico depende de ativos com alta especificidade (linhas, usinas, redes), que funcionam melhor sob modelos cooperativos e planejados. A competição fragmenta a gestão do sistema, criando ineficiências, subinvestimentos e sobrecustos. Por fim, é importante lembrar que o setor elétrico brasileiro é um dos mais estratégicos do país. Energia não é mercadoria: é um insumo fundamental para a vida, para o desenvolvimento e para a soberania nacional. Submetê-lo às leis do mercado é entregar ao capital financeiro o controle sobre um setor vital, abrindo mão de qualquer projeto de país autônomo e inclusivo.
A Medida Provisória anunciada pelo governo precisa ser amplamente debatida e rejeitada. Não se trata de modernizar o setor, mas de desregulamentá-lo em favor dos grandes consumidores e das empresas comercializadoras. A população brasileira, especialmente os mais pobres, pagará a conta dessa aventura liberal travestida de modernização.
Defender um setor elétrico público, planejado, integrado e comprometido com a justiça social é defender o futuro do Brasil.
Reprodução do boletim da Associação dos Empregados da Eletrobras -AEEL.