O que o Brasil pode perder sem a Eletrobras, por Clarice Ferraz

A privatização da Eletrobras ignora o contexto das graves crises ecológica e geopolítica que o mundo enfrenta. Ambas impõem transformações profundas na organização industrial, assim como nas estruturas de governança que regem o setor elétrico dos países ao redor do mundo. Nesse sentido, este artigo apresenta uma breve discussão sobre essas questões, para provar o grave equívoco que seria levar esse projeto adiante.

A desestatização (privatização) faz parte de um plano de profunda reestruturação do setor elétrico brasileiro (SEB). Esse plano prevê a ampliação da comercialização em mercado livre, por meio da progressiva eliminação do ambiente de contratação regulado, no qual as distribuidoras compram a eletricidade que irão fornecer aos seus consumidores. Esse conjunto de transformações é viabilizado nos projetos de lei 414/2021 e 1917/2015, que promovem profunda alteração do marco regulatório que rege as atividades do setor e, portanto, alteram o valor dos ativos a serem privatizados. Eventuais discussões sobre a desestatização somente devem ocorrer quando o novo marco regulatório estiver definido, com suas regras claramente estabelecidas, oferecendo estabilidade regulatória e segurança jurídica aos atores envolvidos. Como tentaremos demonstrar, no contexto das profundas transformações pelas quais passa o setor, tanto a privatização como a ampliação do mercado livre constituem graves erros.

A Eletrobras é dona de portfólio que representa 30% da capacidade de geração do país, constituído em 94% de energias renováveis, dos quais 91% são oriundos de geração hidrelétrica a partir de reservatórios. Esta equivale a praticamente 50% da capacidade de estocagem do Sistema Interligado Nacional. Essa dotação invejável lhe proporciona grande flexibilidade de geração a partir de fonte renovável e, ainda mais extraordinário, a preços módicos, pois grande parte de suas usinas já teve os seus investimentos totalmente amortizados ao longo do período de concessão e tem sua geração remunerada por meio do regime de cotas, que compensa os custos de operação e de manutenção.

Instituído em 2013, o regime de cotas é fruto da renovação das concessões, garantindo aos consumidores a fonte de eletricidade mais barata do SEB até 2042. A privatização prevê a “descotização” dessa eletricidade, equivalente a cerca de 20% da energia contratada pelas distribuidoras. Uma vez descotizada, a eletricidade será comercializada sob o regime de Produtor Independente de Energia, negociada livremente no mercado. Assim, essa mudança de regime configura uma quebra dos contratos estabelecidos, em prejuízo do consumidor brasileiro, que já paga uma das tarifas de energia mais caras do mundo.

Outro agravante é o fato de as usinas a serem privatizadas possuírem grande potencial de ampliação de sua capacidade de geração mediante a instalação de sistemas fotovoltaicos flutuantes e repotenciação, com instalação de novas turbinas, além da possibilidade de torná-las reversíveis. Nada disso foi valorado e a minuta do contrato de concessão permite a concretização de todas essas alternativas, em flagrante ato lesivo ao erário, bem como a apropriação de renda hidráulica pelos acionistas em prejuízo dos consumidores.

A desestatização promove concentração de mercado nas mãos de um único agente privado. A participação da Eletrobras no segmento de geração é atualmente 4 vezes maior do que a da segunda maior empresa do setor. Além disso, ela possui contratos de compra de energia com grandes empreendimentos em que tem participação, o que amplia sua influência no mercado de energia elétrica.

Outro conjunto de ativos preciosos da Eletrobras são suas linhas de transmissão. Ela detém 47% da capacidade de transporte, que permite que grandes volumes de eletricidade possam ser enviados de uma região a outra. Ambos os ativos possuem características de estruturas de monopólio natural. Na geração hidrelétrica, ela é dada pela geografia brasileira, com extensos rios de planalto ao longo dos quais se situam diversas usinas. A otimização do uso da água, com a maximização de geração hidrelétrica, só pode ser alcançada por sua operação coordenada.

Passemos agora à contextualização que explicita a extemporaneidade da proposta do governo. As mudanças climáticas impõem a descarbonização de suas atividades para que o aquecimento não ultrapasse 1,5 °C, na curta janela de oportunidade que se apresenta (IPCC, 2022).

Há uma corrida pela eletrificação dos usos energéticos a partir de energia limpa que demanda radicais transformações nos setores energéticos. Há uma maior participação das energias renováveis em todo o mundo, sobretudo a solar fotovoltaica e a eólica, as Energias Renováveis Variáveis (ERVs), marcadas pela imprevisibilidade e pela variabilidade de sua geração. Para incorporá-las são necessárias adequações físicas dos sistemas. Estas, por sua vez, impõem mudanças nas estruturas de comercialização de eletricidade e nos exercícios de planejamento de curto, de médio e de longo prazo.

À medida que aumenta a participação de ERVs, cresce a necessidade de fontes de resposta rápida às perturbações de corrente ou de carga, para manter o equilíbrio e a integridade do sistema. Assim, diz-se que o sistema precisa ter cada vez mais “flexibilidade”.

Diversos estudos mostram que a diversidade geográfica é uma grande aliada para assegurar o equilíbrio do sistema. Quanto maior o território coberto por um sistema elétrico, menor a variabilidade associada às ERVs. Através da rede, o sistema pode ser abastecido por fontes de geração de distintas localidades, e há aproveitamento das complementaridades diárias e sazonais, frequentes entre a disponibilidade de recursos eólico, solar, biomassa, etc. As linhas de transmissão mostram-se uma alternativa muito mais barata do que os sistemas de estocagem de eletricidade, em particular, as baterias.

Outro importante elemento de flexibilidade sistêmica é o próprio parque gerador, refletido por sua capacidade de modular sua operação e pela presença de fontes de estocagem (armazenamento) de energia. A melhor fonte, em termos de tempo de resposta e de menor custo, são as centrais hidrelétricas com reservatórios.

Do lado dos mercados, à medida que cresce a participação das ERVs, mais difícil se torna sua integração em mercados tradicionais, que têm seus fundamentos econômicos perturbados. Como não dependem de combustíveis, seus custos marginais são praticamente zero e seu custo de produção é efetivamente um custo fixo. Assim, quando a oferta de eletricidade de ERVs se torna elevada com relação à demanda, o preço tende a zero. O custo marginal é frequentemente inferior ao custo médio, como nos monopólios naturais. Além disso, a intermitência e a imprevisibilidade da geração levam à alta volatilidade dos preços. Desse modo, o sinal de preço que deveria indicar a necessidade de expansão é profundamente perturbado, e não promove a expansão de capacidade necessária. Assim, a alegação de que a privatização e a ampliação do mercado livre são necessárias para a expansão do nível de investimento no setor elétrico não encontra respaldo teórico nem empírico.

No entanto, o sistema continua precisando expandir sua capacidade de fornecer energia para atender picos de demanda ou para compensar oscilações de oferta. Foram criados produtos que remuneram os serviços de energia de acordo com a necessidade do sistema, como contratação de serviços ancilares e de “capacidade”. Esse deve ser o caminho seguido pela reforma do mercado brasileiro, como revelam as prioridades da agenda regulatória do biênio 2022-23 da Aneel. Nos mercados de capacidade, ou de reserva, contrata-se a capacidade de gerar eletricidade, ou potência, que possa entrar em operação para cobrir picos de demanda e flutuações de geração das ERVs.

Portanto, o que se vê é uma contínua complexificação, acompanhada de crescentes custos de transação, que oneram o custo final de eletricidade. Ainda assim, esses mecanismos são incapazes de sanar a real inadequação das estruturas de mercado competitivas para setores com maior participação de ERVs, como deverão ser todos os sistemas elétricos, e agravam a exclusão econômica do acesso à eletricidade.

No Brasil, não há nenhum questionamento sobre esse problema. A privatização da Eletrobras e a ampliação do mercado livre de energia servem a interesses setoriais estreitos. O projeto provoca a transferência dos ativos de flexibilidade essenciais para o sucesso da transição energética brasileira e quebra os contratos que garantem ao consumidor o acesso à energia barata e de origem renovável. Além disso, há ampliação da geração termelétrica, via contratos com inflexibilidade – o oposto do que todos os sistemas estão buscando para garantir a segurança de abastecimento –, a despeito do aumento do nível de emissões poluentes e do encarecimento da tarifa, além do risco de desabastecimento, visto que o Brasil importa parte importante do gás que abastece suas termelétricas e o mundo enfrenta uma profunda crise energética. Essa crise é, antes de mais nada, uma crise do gás natural (Batlle, Schittekatte e Knittel, 2022), cujos preços deverão permanecer altos e voláteis nos próximos anos, impulsionando a inflação, reduzindo a renda das famílias e aumentando os custos de produção para as empresas e os preços de outras commodities, incluindo alimentos.

Nesse contexto de profundas transformações técnicas, organizacionais e institucionais, e em meio às graves crises ecológica e geopolítica, precisamos de um modelo de energia de longo prazo radicalmente diferente, baseado em energia limpa, com preços acessíveis. O Brasil tem todos os elementos necessários para implementá-lo. A privatização da Eletrobras, com seus ativos de flexibilidade, desarticula a estrutura capaz de promover a transição energética justa para todos os brasileiros.

Publicado originalmente no Jornal dos Economistas

Via https://www.diariodocentrodomundo.com.br/

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