A história econômica do Estado Brasileiro pode ser contada pelas inúmeras narrativas falseadas que escondem propósitos nem sempre tão republicanos, e esse parece ser o da pretensa privatização da Eletrobras.
Via de regra por conveniência justificada em números, o discurso privatista ganha tons e notoriedade como se fosse uma verdade absoluta. da humanidade, e como se escanda-los e gestões temerárias fossem privilégios apenas da administração pública, se esquecendo de casos como da distribuidora de energia Enron, que com uma receita de 101 bilhões de dólares e 21 mil funcionários, mesmo sendo auditada pela Arthur Andersen, uma das cinco maiores auditorias do mundo, conseguia manipular seus balanços e esconder dele dividas não lançadas de 25 bilhões de dólares.
O caso dela e de outras empresas privadas, listadas em bolsa e auditadas, levou a revisão das regras de compliance e a criação da lei Sarbanes Oxley em 2002 com o propósito de se ampliar o controle e a transparência nas empresas.
Logo a má gestão não é primazia do Estado, porém o propósito aqui é evidenciar algo no mínimo intrigante como vender a maior empresa de energia brasileira no momento em que o valor da energia bate recordes mundiais? Como vender a maior geradora e transmissora de energia sem desequilibrar o mercado, e sem que o CADE se manifeste?
Como vender a maior empresa de energia do Brasil, no momento em que a transformação digital, que vai ampliar assustadoramente o consumo de energia com mais equipamentos e carros elétricos em nossas estradas? Como vender justamente quando o valor da moeda brasileira derrete, transformando nossas ações em verdadeira pechincha?
Qual o sentido em vender o controle por preço de banana depois de renovar todas suas outorgas exploração por mais 30 anos? Qual o valor da renovação dessas outorgas no balanço da Eletrobras que pretendem privatizar? De que maneira o Tribunal de Contas e a CVM irão avaliar a precificação desse novo ativo intangível?
A privatização nunca pode ser uma decisão de governo mas de Estado, ou seja não pode ser decidida ao sabor do vento do governante de plantão, pois se trata de património público, e que não pode estar sujeito ao humor do plantonista do planalto, seja ele quem for.
Energia em qualquer lugar do mundo e em qualquer momento da história da humanidade é elemento estratégico para o desenvolvimento, e no caso da Eletrobras considerando a sua participação é crime contra a concorrência e o livre mercado, realizar a privatização da forma proposta de uma empresa que tem cerca 48 usinas hidrelétricas, 12 termelétricas a gás natural, óleo e carvão, duas termonucleares, 62 usinas eólicas e uma usina solar, próprias ou em parcerias, distribuídas por todo território nacional, com capacidade instalada de 50.648,2 MW, o que representa cerca de 29% do total no Brasil.
Quando falamos de transmissão de energia elétrica no país, a Eletrobras possui 43,54% do total de linhas de transmissão do Brasil, são cerca de 70.000kms de extensão.
Segundo a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), a privatização pode representar um aumento de até 16% nas tarifas de energia, lembrando que 52% das bacias hidrográficas do país ficariam na mão de um particular, sendo ele um grupo brasileiro ou não, o que implica em risco para soberania nacional sobre todos os aspectos.
A privatização como saída esconde mentiras históricas, vamos lembrar o lançamento de ações da Petrobras em setembro de 2010, em que a empresa realizou o maior IPO da história brasileira cuja demanda total chegou a 87 bilhões de dólares, para uma época em que o barril do petróleo estava valendo US$77,50 próximo dos US$72,00 da cotação atual.
Curioso é que naquela oportunidade a chamada para os investidores foi para assumirem o risco na onerosa exploração do pré-sal, ou seja o governo convidou o mercado para o risco, ao contrário do que faz o atual governo, que convida a iniciativa privada para o mar sossegado das concessões de exploração renovadas por mais 30 anos.
Aquela em 2010, 12 anos antes da explosão de demanda por energia elétrica, foi de longe a maior operação do tipo já realizada, ultrapassando a emissão da empresa de telecomunicações japonesa NTT, que movimentou 36,8 bilhões de dólares em 1987 e até agora era considerada a maior oferta de ações do mundo.
Logo qual o sentido de se liquidar uma empresa estratégica para verticalização dos nossos produtos com mais energia embarcada e logo mais valor agregado quando o mundo inteiro corre atrás de energia elétrica? Qual o sentido de vender na bacia das almas quando o dólar bate R$5,60 o maior ativo intangível de energia da América disponível?
Não faria muito mais sentido convidar o mercado para junto com as controladas da Eletrobras explorar esse mercado ampliando as regras de compliance e governança da estatal?
O mercado de capitais está sempre de olhos e ouvidos atentos para ótimas oportunidades, e esse é o caso da energia no Brasil, desde que possamos dar segurança jurídica para os investidores com regras claras e transparentes, sem que essa venda coloque em risco a soberania nacional ou a competitividade dos nossos produtos e serviços.
Um recente estudo da Agência Internacional de Energia afirma que, uma verdadeira revolução vem ocorrendo no segmento das energias renováveis, e que o mundo está muito próximo de uma enorme explosão de energia eólica e solar já nos próximos cinco anos à medida que os custos diminuem e as nações aumentarem suas ações para lidar com a emergência climática.
Só para se ter uma medida, a capacidade de geração adicionada em todo o mundo durante este 2021 quebrou mais uma vez um recorde absoluto, 290GW, o que equivaleria a ter construído trezentos reatores nucleares. As previsões para 2026 também apontam para um aumento de 60% em relação aos níveis do ano passado, o que equivale a cerca de 4.800GW, o mesmo gerado atualmente por todas as usinas de geração de combustíveis fósseis (térmicas) e energia nuclear em todo o mundo. Nesse período, 95% de todo o aumento da capacidade instalada em todo o mundo virá das renováveis, onde o Brasil é bem posicionado.
A privatização da forma proposta nesse momento é um crime, pois fere o direito de concorrência, coloca em risco a competitividade de toda indústria nacional e lesa o patrimônio público pelo preço vil que despreza o crescimento do mercado de energia bem como o valor dessas concessões renovadas por mais 30 anos.
Fonte: Texto de Charles Machado via Misto Brasília