MME caminha em outra direção e anuncia renovações com “novas regras”. Para o professor Ildo Sauer, “a Enel não é um caso isolado”. O engenheiro Íkaro Chaves afirma que medidas não resolvem. Privatizações fizeram explodir as tarifas, mostra Roberto D’ Araújo
Após os apagões quase diários em São Paulo e o escandaloso descaso da empresa italiana Enel, que é concessionária de energia elétrica na região, cresceu no Brasil a campanha para que o governo não renove as concessões que estão vencendo no país. Especialistas alertam que o problema não é isolado, mas fruto de um sistema que, a partir das privatizações, privilegia os lucros em detrimento da qualidade dos serviços e de investimentos em manutenção e controle.
O governo, no entanto, caminha em outra direção. O Ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, acaba de anunciar regras “mais duras” nas renovações dos contratos das distribuidoras de energia elétrica.
De acordo com Silveira, as regras atuais dos contratos de distribuição tornam a declaração de caducidade, ou seja, a cassação do contrato “inviável”. “Uma aventura de uma declaração de uma caducidade pode custar muito aos cofres da União porque eles têm muitos direitos, muito mais direitos que deveres”, declarou o ministro.
Segundo o ministro, o governo deve cobrar algumas premissas no processo de renovação das concessões, como: aumento das exigências para duração e frequência das interrupções no fornecimento de energia; medição de percepção social da qualidade de serviços, que no lugar de ser medida sobre a área de concessão da distribuidora, deve ser em territórios menores – como bairros, por exemplo; maior investimento das distribuidoras nas redes de média e baixa tensão; criar uma linha mais próxima entre distribuidoras e prefeituras.
O engenheiro Íkaro Chaves, ex-dirigente sindical e ex-conselheiro eleito do Conselho de Administração (Consad) da Eletronorte, vem criticando duramente o processo de privatizações do setor elétrico no Brasil. Para ele, “o resultado dessas privatizações e da mercantilização do sistema, nós estamos vendo hoje. A conta de luz dos brasileiros, que era das mais baratas do mundo, passou a ter um encarecimento progressivo”.
Íkaro comentou o decreto nº 12. 068, de 20 de junho de 2024, anunciado pelo ministro de Minas e Energia “endurecendo” as renovações de concessões. “São medidas, tirando uma coisa ou outra, que aparentam serem mais exigentes, mas que não resolvem os problemas causados pelo modelo atual de concessões”, disse ele. “Por exemplo, as empresas vão poder expurgar das metas de avaliação de qualidade do serviço – tipo frequência de problemas e tempo de demora na solução – situações consideradas especiais”. O descalabro ocorrido em São Paulo, só para citar um caso desses, poderia, pelo novo decreto, ser – como foi – expurgado pela Enel. Seria, segundo ela, culpa de São Pedro e não sua”, acrescentou.
E, segundo o engenheiro, mesmo não cumprindo as metas exigidas de qualidade, as empresas poderão, segundo o decreto, ser “aprovadas” – leia-se, terem as concessões renovações – se prometerem aportes de capitais. Esta cláusula, não por acaso, está sendo chamada de “Cláusula Meloni”. As “exigências” de trabalho decente, constantes no decreto, também não passam de generalidades. Não há, segundo Íkaro, defesa efetiva da valorização dos trabalhadores.
Íkaro, que defende a reestatização da Eletrobrás, destacou que a energia barata “é um diferencial, inclusive para a nossa industrialização, que já possuía uma energia limpa, renovável e barata. Isto ajudou a industrialização do Brasil. A partir do momento em que o processo de privatização começou, tivemos um encarecimento progressivo da conta de luz. Além disso, estamos vendo uma piora na qualidade dos serviços em todo o país, não é só em São Paulo, mas em todo o país”, denunciou.
Atualmente, o Ministério de Minas e Energia tem um processo de cassação em andamento: o da Amazonas Energia, que foi privatizada e está completamente falida. Mas, ao invés de reestatizar a empresa, o governo decidiu usar recursos públicos cobrados aos consumidores para saneá-la e entregá-la à Âmbar Energia, cujos proprietários são os irmãos Joesley e Wesley Batista (do Grupo J&F).
Primeiro o governo ajudou na compra das usinas geradoras e, em seguida trata da venda da própria Amazonas. A Âmbar sairá diretamente beneficiada pelo texto de uma MP que garantiu o saneamento da empresa.
O ex-diretor do Instituto Ilumina, Roberto D´Araújo também tem denunciado que, após as privatizações, ao contrário dos que defendiam as vendas das empresas públicas, as tarifas de energia subiram muito mais do que a inflação no Brasil. Recentemente demonstrou, em artigo publicado pelo HP, a subidas das tarifas do setor elétrico a partir das privatizações.
O contrato da Enel vence em 2028. Para o professor Ildo Sauer, ex-diretor da Petrobrás e titular do Instituto de Energia da USP, “há uma degradação geral do sistema elétrico que está sendo constatada pelos indicadores no Brasil inteiro e, de maneira pronunciada, em São Paulo e no Rio de Janeiro”. “O caso da Enel não é um caso isolado”, destaca o professor.
“Os dirigentes das empresas são pressionados para aumentar os lucros e dividendos. Isso se consegue reduzindo custos porque as tarifas estão determinadas. Elas se alteram com a inflação de um determinado período e a alteração de produtividade. Quando a receita está fixa, reduz-se custos cortando na modernização, na redução dos quadros e na precarização”, acrescentou Ildo.
“As equipes para atendimentos às emergências da Enel em SP foram reduzidas em mais de 30%”, destaca o professor da USP. “A população paga a conta de serviços de péssima qualidade porque a pressão sobre os dirigentes das empresas é a redução de custos para aumentar lucros dividendos”, prosseguiu o engenheiro. Ele associou “à deterioração do setor elétrico ao fim do sistema de “comando e controle que havia antes das mudanças neoliberais e das privatizações”.
Ildo explicou que, com o sistema de comando e controle, “as empresas eram obrigadas a mandar planos para o órgão controlador, que na época se chamava DNAE (Departamento Nacional de Águas e Energia), depois mudou para ANEEL (Agência Nacional de Energia Elétrica)”. “Isto era aprovado previamente e se demonstrava que com aqueles investimentos e com aquele plano de manutenção, o sistema seria confiável e aquilo era traduzido em custos e os custos se transformavam em tarifas. Isso era o comando e controle”, disse. “Agora”, destacou, “os dirigentes das empresas são pressionados a aumentar lucros e dividendos e fazem isso reduzindo custos”.
Ildo Sauer lembrou que “com as privatizações prometeu-se que as tarifas iam baixar e a qualidade ia aumentar”. “As tarifas, desde as reformas neoliberais, expandiram quase 200% acima da inflação e a qualidade tem se deteriorado. O Brasil precisa repensar o modelo, porque o país precisa de energia para melhorar a vida das pessoas, para a economia crescer e se reindustrializar. Isso que está acontecendo, que aconteceu no ano passado, e esses episódios de agora em São Paulo, mostram que essa estrutura será um empecilho à retomada do crescimento e à reindustrialização”, concluiu.
Por Hora do Povo l Publicado em 21 de junho de 2024.