A política ambiental do governo Bolsonaro e a privatização da Eletrobras são medidas reveladoras da forma que o governo enxerga a relação entre a sociedade e o meio ambiente. As relações entre o setor elétrico e o ecossistema são profundas e vão além das polêmicas envolvendo as construções de hidrelétricas, as usinas nucleares e as emissões de gases por usinas térmicas. Esses são assuntos importantíssimos, do mesmo modo que o respeito às áreas e populações indígenas, aos ribeirinhos e aos atingidos por barragens.
Mas dois outros pontos nesse debate, inter-relacionados a esses assuntos, costumam ser deixados de lado. Falo dos impactos do desmatamento sobre a atual estrutura da oferta de energia elétrica e dos estímulos ao consumo dados aos grandes consumidores de energia, como indústrias intensivas em energia elétrica com grande impacto ambiental (como as de alumínio, celulose etc.), e aos especuladores.
Sobre o primeiro ponto, os impactos do desmatamento sobre a atual estrutura da oferta de energia elétrica já são palpáveis. No Brasil, cerca de 65% da oferta de energia elétrica está baseada em hidrelétricas, cujas usinas dependem das vazões dos rios. Importantes usinas hidrelétricas estão localizadas nas regiões Centro-Oeste, Sudeste e Nordeste. O nível e a vazão dos rios dessas regiões dependem da umidade formada na Amazônia que se desloca para essas regiões, formando os chamados “rios voadores”.
O desmatamento – que não é de agora, mas vem se agravando – impacta o ciclo hidrológico responsável pelas chuvas e pela regulação do clima em grande parte do país. Entre as muitas consequências ruins do desmatamento está a menor vazão de alguns rios.
A capacidade de geração de energia em muitas hidrelétricas já sofre o impacto da redução da quantidade de água que chega aos reservatórios. Não por acaso, o nível de água em hidrelétricas do Sudeste e Centro-Oeste ficou abaixo da média histórica pelo 5º ano consecutivo. A conjunção de erros de planejamento com desmatamento tem provocado maior necessidade de despacho de usinas térmicas para compensar a menor capacidade de geração das hidrelétricas. A geração térmica é mais cara que a hidrelétrica e pressiona para cima os preços da energia elétrica.
Aqui entramos no segundo ponto que esclarecerá como esse processo está relacionado tanto ao consumo de energia pelos grandes consumidores quanto à privatização da Eletrobras. O modelo do setor elétrico brasileiro, vigente desde 1995, privilegia os grandes consumidores de energia e os especuladores. Estes, desde o início de sua vigência, pagaram um valor entre 25% e 30% menor (em média) pela energia elétrica. Isso, na prática, significa que se os consumidores residenciais pagaram 300 reais por MWh, indústrias, shoppings e outros grandes consumidores pagaram 225 reais pela mesma quantidade de energia elétrica.
C abe ressaltar que ambos compram energia elétrica do mesmo sistema, que atua de forma integrada. Ou seja, essa energia vendida a preços diferentes pode ter sido gerada pela mesma usina, inclusive! Mas o constante aumento da geração térmica tende a reduzir o diferencial de preço entre os mercados, aproximando os preços da energia elétrica vendida aos grandes consumidores do preço de compra dos consumidores residenciais. A redução desse diferencial atinge também as margens de lucro dos bancos (comercializadoras) que atuam como especuladores no setor de energia elétrica.
A geração térmica vem apresentando um aumento consistente na última década. Essa maior participação da geração térmica é, em parte, resultado de uma opção de governos passados. Mas o fato desse aumento ter se dado pela atuação quase constante de térmicas caras construídas para atuar apenas ocasionalmente (especialmente após a MP 579) é resultado dos erros de planejamento.
Pensar sobre o setor elétrico envolve pensar qual desenvolvimento queremos. Isso significa inclusive questionar se o crescimento econômico (a expansão constante do lucro) deve ser tratado como prioridade incontestável. Uma taxa de crescimento média de 3% ao ano do Brasil significaria que, por ano, o país necessitaria ampliar sua capacidade de geração de energia elétrica em cerca de 2 mil MW médios.
Isso implica ter que construir, a cada ano, uma nova usina como Xingó no Rio São Francisco. Além dessa reflexão sobre qual desenvolvimento desejado, outra importante indagação que nos cabe fazer é para tentar entender como queremos utilizar a energia que já produzimos.
É importante lembrar que muitas das indústrias que se beneficiam desse processo são altamente poluidoras, como as de alumínio, celulose e as siderúrgicas. Será que devemos priorizar o consumo de indústrias, shoppings e o lucro de bancos (comercializadoras) ao invés do consumo residencial? Será que podemos (e devemos) abrir mão de um importante instrumento de políticas públicas para o setor elétrico como é a Eletrobras em nome do lucro dessas empresas e em detrimento dos consumidores residenciais? Será que devemos entregar o controle estratégico de importantes bacias hidrográficas, com todas as suas implicações para abastecimento de agua, irrigação e navegação, para interesses privados e estrangeiros?
Para alguns, pode parecer contraditório colocar a defesa da Eletrobras e do meio ambiente no mesmo lado. Mas a Eletrobras é apenas um instrumento para aplicação de políticas públicas. Por isso, suas ações refletem as políticas de governo nos seus erros e acertos, nas suas contradições.
Assim, a Eletrobras que foi fundamental para ampliação do parque eólico brasileiro, que tem o mais importante programa de estímulo à economia de energia (Procel) e que é fundamental para levar energia aos locais mais ermos do país é a mesma que participou da construção de grandes usinas em processos ambientalmente altamente questionáveis. Mas o que se quer agora vai muito além disso. O que se quer agora é abrir mão desse potente instrumento de promoção de políticas públicas. O que se quer agora é deixar a população totalmente refém de empresas privadas, que respondem univocamente à lógica do lucro.
Reprodução Carta Capital